Uma análise crítica da dominância masculina nas estruturas sociopolíticas e a necessidade de reequilibrar os princípios feminino e masculino
Por António da Cunha Duarte Justo
Introdução: O Colonialismo Mental da Matriz Masculina
Neste ensaio procuro elaborar uma proposta de um modelo antropológico equilibrado com base no princípio da complementaridade. A sociedade contemporânea encontra-se enredada num paradoxo fundamental: enquanto se proclama a igualdade de género e se celebram conquistas no campo dos direitos das mulheres, a estrutura profunda que organiza o pensamento, o poder e a economia permanece fundamentalmente masculina na sua essência. Este “colonialismo mental”, como aqui o designamo, não poupa homens nem mulheres, condicionando o desenvolvimento humano e social a padrões aparentemente arbitrários, determinados pelo zeitgeist de cada época, mas invariavelmente ancorados numa lógica de afirmação, competição e domínio.
O presente artigo propõe uma análise teórica, analítica e crítica da nossa matriz antropológica e sociopolítica, procurando não apenas diagnosticar o problema, mas apresentar um modelo alternativo que honre genuinamente tanto o princípio da feminilidade como o da masculinidade, não como categorias biológicas fixas, mas como dimensões complementares presentes em cada ser humano e necessárias ao equilíbrio social.
- Arqueologia da Diferenciação: Das Origens à Divisão do Trabalho
1.1. As Raízes Evolutivas da Especialização
Nos primórdios da humanidade, a divisão de tarefas entre caça e recolha estabeleceu padrões de especialização cognitiva e social que reverberam até hoje. O homem caçador desenvolveu capacidades de visão ao longe, pensamento abstrato e estratégico, capacidade de risco calculado e ação decisiva, características que designo como “masculinas”. A mulher recolectora especializou-se na atenção ao próximo e ao concreto, na gestão do espaço doméstico, na nutrição e no cuidado, as pressupostas características “femininas”.
Esta diferenciação inicial, produto de necessidades adaptativas, não era hierárquica, mas complementar. Duas leis evolutivas operavam em equilíbrio: a lei da afirmação seletiva (seleção natural, competição, domínio do mais forte) e a lei da colaboração (cooperação, inclusão, interdependência). Ambas eram necessárias à sobrevivência do grupo.
1.2. Da Deusa-Mãe ao Patriarcado: A Viragem Neolítica
No período neolítico, com o surgimento da agricultura e da pecuária, o culto da deusa-mãe testemunhava o reconhecimento da mulher como princípio de continuidade da vida, associada à terra fértil e à natureza. Esta fase representa talvez o último momento histórico de equilíbrio real entre os princípios feminino e masculino nas estruturas simbólicas e de poder.
Com o desenvolvimento da metalurgia, da guerra organizada e das primeiras estruturas estatais complexas, inicia-se a progressiva masculinização das estruturas de poder. O princípio masculino expresso em afirmação, conquista, hierarquia e domínio, passa a colonizar todas as esferas do social.
- A Economia como Motor da Masculinização Social
2.1. Da Revolução Industrial à Era Digital
A Revolução Industrial marca um ponto de viragem crucial. A transição dos modelos agrícola e artesanal para a produção industrial em larga escala exigia cada vez mais mão-de-obra. As mulheres constituíam uma reserva estratégica, mas para serem integradas no mundo industrial, tinham de se adaptar à lógica masculina da produção: competição, eficiência, hierarquia rígida, separação entre trabalho e vida.
A pílula anticoncepcional, significativamente criada para as mulheres, não para os homens, simboliza esta instrumentalização: permitia às mulheres entrarem no mercado de trabalho nos termos masculinos, controlando a reprodução para não interromper a produção. A maternidade, princípio feminino por excelência, tornava-se um “problema” a gerir sob o princípio da masculinidade.
O pragmatismo e o utilitarismo substituíram progressivamente a filosofia, a religião e a ética social como fundamentos do pensamento coletivo. A sociologia tornou-se a pilar da democracia, mas uma democracia crescentemente reduzida à gestão pragmática e cosmética, orientada para resultados mensuráveis a curto prazo, numa lógica essencialmente masculina expressa também na funcionalidade e logaritmos.
2.2. O Marketing e a Instrumentalização da Feminilidade
Paradoxalmente, enquanto as estruturas se masculinizavam, o marketing descobria na sensibilidade feminina um filão a explorar. As mulheres, mais orientadas para o sentimento e para a dimensão relacional e do consumo (versus o foco masculino no propósito), tornaram-se alvos privilegiados da indústria e dos serviços. Mas esta “valorização” da feminilidade era, na verdade, mais uma forma da sua instrumentalização ao serviço do princípio masculino: o lucro, a expansão, o progressos ou seja, o crescimento pelo crescimento.
- O Princípio “Divide et Impera” Aplicado ao Género
3.1. A Falsa Dialética da Luta de Géneros
O antigo princípio político e militar “divide para reinar” (divide et impera) encontra na questão do género uma aplicação particularmente insidiosa. Tal como na luta entre ricos e pobres, a dialética entre homens e mulheres é frequentemente enquadrada em termos de conflito, competição e conquista de poder, numa palavra, em termos masculinos de carácter meramente sociológico.
Grande parte do ativismo feminista contemporâneo, embora animado por legítimas reivindicações de justiça, adota estratégias de luta de carácter extremamente masculino: afirmação agressiva, confrontação, conquista de territórios de poder. Esta contradição performativa, lutar pela feminilidade com armas masculinas, revela até que ponto a matriz masculina colonizou até os movimentos que pretensamente a contestam.
3.2. A Naturalização do Paradigma Militar
A naturalidade com que se discute hoje a introdução do serviço militar obrigatório também para mulheres constitui um sintoma revelador. O modelo militar, hierarquia rígida, obediência, violência organizada, sacrifício individual ao coletivo abstrato, representa a quintessência do princípio masculino. Que a “igualdade de género” se afirme através da integração das mulheres neste modelo, em vez de questionar o próprio modelo, demonstra o grau de internalização da matriz masculina. Também a mulher reduzida a mera funcionalidade.
- Mutilações Contemporâneas: Homens Efeminados e Mulheres Masculinizadas
4.1. O Mito da Feminização Social
Observamos hoje homens aparentemente mais “efeminados”, o que é frequentemente interpretado como sinal de feminização da sociedade. Esta leitura é duplamente equivocada. Primeiro, porque confunde efeminação (caricatura da feminilidade) com feminilidade genuína (princípio de integração, cuidado, relação). Segundo, porque estes homens não são agentes de uma mudança estrutural, mas sintomas e vítimas do zeitgeist, manifestações de uma crise de identidade masculina que não altera a dominância da matriz masculina nas estruturas de poder.
4.2. O Drama das Mulheres em Posições de Poder
Sintomaticamente, mulheres em cargos de liderança tendem frequentemente a ser mais agressivas, mais “masculinas” na sua gestão do que muitos homens. Este fenómeno não é acidental: numa estrutura masculina, as mulheres sentem necessidade de “provar” o seu valor adotando e exacerbando os códigos masculinos. É uma forma de compensação que, tragicamente, perpetua o sistema que as limita.
A verdadeira igualdade não virá de mulheres que se tornam “homens honorários”, mas da transformação das estruturas para que possam acolher genuinamente o princípio feminino.
- A Era Digital e a Intensificação da Masculinização
5.1. Hiperconexão e Individualização
A revolução digital, com a Inteligência Artificial, a automação, os Big Data e a biotecnologia, promete (ou ameaça) uma transformação sem precedentes. Paradoxalmente, num mundo hiperconectado, observamos uma intensificação da individualização (acentuação do ego), mais uma manifestação do princípio masculino (autonomia, separação, competição) em detrimento do feminino (interdependência, comunidade, cuidado).
A lógica algorítmica que domina a era digital é essencialmente masculina: análise, divisão, classificação, otimização, eficiência. Os próprios algoritmos reforçam soslaios de género existentes, perpetuando a matriz masculina em código.
5.2. A Crise da Visão a Longo Prazo
O modelo masculino dominante, focado na afirmação imediata e na conquista de objetivos a curto prazo, mostra-se crescentemente inadequado face aos desafios contemporâneos. As crises ecológica, climática e de sustentabilidade exigem precisamente as qualidades do princípio feminino: cuidado com o longo prazo, atenção aos efeitos sobre o todo, responsabilidade relacional, prudência.
A incapacidade das nossas estruturas políticas e económicas de responderem adequadamente a estes desafios não é acidental, é estrutural, produto da dominância da matriz masculina.
- Proposta de um Modelo Antropológico Equilibrado
6.1. Reconhecer a Bivalência de Cada Pessoa
O primeiro passo é reconhecer que cada pessoa, independentemente do sexo biológico, é portadora de características masculinas e femininas. A masculinidade (afirmação, análise, abstração, competição) e a feminilidade (integração, síntese, materialidade, tangibilidade: colaboração) não são propriedades de homens e mulheres, mas dimensões da psique humana (Aninus e Anima) e princípios organizadores da sociedade.
6.2. Reequilibrar as Estruturas de Poder
Em vez de procurar a “igualdade” através da adaptação das mulheres à matriz masculina, é necessário transformar as próprias estruturas para que valorizem genuinamente:
– Decisões a longo prazo (versus resultados imediatos)
– Cuidado e sustentabilidade (versus crescimento e conquista)
– Colaboração e interdependência (versus competição e autonomia)
– Concreto e local (versus abstrato e global)
– Processos e relações (versus objetivos e hierarquias)
6.3. Reformular a Educação e a Cultura
A educação deve cultivar conscientemente ambos os princípios em todas as pessoas:
– Capacidade de afirmação e de integração
– Pensamento analítico e sintético
– Competição saudável e colaboração
– Autonomia e interdependência
– Corpo e alma em diálogo de complementaridade
- Para Além do Zeitgeist: Liberdade de Pensar
7.1. “Conhece-te a Ti Mesmo”
O princípio socrático “conhece-te a ti mesmo” é aqui fundamental. Enquanto não reconhecermos conscientemente a colonização das nossas mentes pela matriz masculina, permaneceremos seus prisioneiros. O autoconhecimento individual e coletivo é a precondição da liberdade.
7.2. Criatividade e Inovação Genuínas
A verdadeira criatividade e inovação exigem liberdade de pensar para além dos padrões estabelecidos. Um modelo antropológico equilibrado, que honre ambos os princípios, seria genuinamente inovador; não no sentido do “progressismo globalista” (que é frequentemente mais uma forma de imperialismo da matriz masculina), mas no sentido de abrir possibilidades realmente novas de organização social.
- Conclusão: Rumo a uma Nova Complementaridade
A sociedade contemporânea encontra-se numa encruzilhada. A intensificação da matriz masculina, longe de nos conduzir a um futuro sustentável e humanamente satisfatório, está certamente a produzir uma era de “desumanização do humano”, um novo nomadismo desenraizado, uma crise ética de proporções sem precedentes.
A solução não passa por inverter simplesmente a polaridade, substituir a tirania do masculino pela do feminino, mas por reconhecer a necessidade de ambos os princípios numa relação de complementaridade genuína, não hierárquica.
Homens e mulheres, cada um com a sua particular combinação de características masculinas e femininas, precisam de estruturas sociais, políticas e económicas que valorizem essa riqueza em vez de a mutilarem. Apenas assim será possível um desenvolvimento verdadeiramente humano, nem exclusivamente masculino nem exclusivamente feminino, mas integralmente humano.
O desafio não é técnico, mas civilizacional: trata-se de re-imaginar a própria estrutura do poder, da economia e da organização social para além do paradigma da dominação. Trata-se, afinal, de realizar a promessa não cumprida da modernidade: uma sociedade de pessoas livres e iguais em dignidade, capazes de afirmação e de integração, de autonomia e de interdependência, de conquistar e de cuidar.
Este é o horizonte de uma verdadeira inovação antropológica, não a adaptação das mulheres ao mundo masculino, mas a criação de um mundo verdadeiramente humano.
O progresso verdadeiro não é apenas técnico, mas humano; não é apenas crescimento, mas desenvolvimento; não é apenas afirmação, mas também integração.
Considero urgente que os temas de que a ciência, a economia e a política se deveriam ocupar prioritária e criticamente seriam os seguintes: Matriz masculina, princípios feminino e masculino, complementaridade de género, antropologia social, crítica da modernidade, economia do cuidado, colonialismo mental, desenvolvimento humano integral.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo